O avanço do jângal
Estão lembrados de que, após
matar Shere Khan, Mowgli declarou aos lobos da alcateia de Seone que dali por
diante caçaria sozinho; e os quatro filhotes de Mae Loba disseram que o acompanhariam.
A primeira coisa que Mowgli fez,
quando a alcateia se dispersou, foi abrigar-se na caverna dos seus amigos lobos
e dormir todo um dia e toda uma noite. Ao despertar contou a eles que ali se
sentia compreendido e todas as histórias que tinha vivido na aldeia, inclusive
sobre o plano para acabar com Shere Khan e fez brilhar o sol na lamina da faca que usara para
esfolara o tigre manco.
Mãe loba não gostava nada dessa
conversa:
- Felizmente não vi nada disso,
respondeu Mae Loba. Não suporto ver meus filhos tratados como chacais. Teria
jurado vingança contra a alcatéia dos homens, poupando apenas a mulher que te
deu leite. Sim, só pouparia a ela.
- Paz, paz, Raksha! Murmurou Pai
Lobo. Nossa Rãzinha voltou tão cheia de sabedoria. Fiquem os homens com os
homens. Baloo e Bagheera fizeram eco a essas palavras:
- Fiquem os homens com os homens.
Mowgli sorria, satisfeito, com a
cabeça em repouso sobre o flanco de Mae Loba desejando nunca mais ver, ouvir ou
cheirar uma criatura humana.
- E se os homens vierem a ti,
irmãozinho? Perguntou Akela, movendo uma orelha.
- Somos. Cinco, rosnou o lobo
Gris.
- Temos que esperar pelo revide,
observou Bagheera, com um ondular de cauda, pondo os olhos em Baloo. Mas para
que pensar nos homens agora, Akela?
- Por uma razão muito simples,
respondeu. Depois que a pele do malhado foi estendida na Roca do Conselho,
voltei a aldeia pelo caminho que viemos para embaralhar nossas pegadas No
caminho encontrei Mang o morcego que me falou que aldeia se prepara para
caça-lo irmãozinho com a flor vermelha nas mãos
O menino sem entender nada
pensou: Os homens expulsaram-me de lá. Que mais querem comigo? Que pretendem?
- Tu és homem, irmãozinho. Não
compete a nós, caçadores livres, dizer o que os teus irmãos homens pretendem,
disse.
Bagheera de repente saltou de pé
farejando o ar. Lobo Gris imitou-a.
Akela também farejava agachado.Mowgli encheu-se de inveja. Podia farejar odores
melhor do que qualquer outra criatura humana, mas estava longe do olfato dos
filhos do jângal. Molhou o dedo, esfregou-o no nariz.
- Homem! Rosnou Akela
- Buldeo! Completou Mowgli,
sentando-se. Vejam o brilho de sua espingarda.
- Eu tinha certeza de que os
homens iam nos seguir. Exclamou Akela com vaidade.
Os lobos já se precipitavam em
direção aos homens quando Mowgli os impediu gritando:
- Para trás! Homem não come
homem. E a lei da selva é clara a morte de um atrai outros.
- O filhote de homem tem razão.
Concordaram.
Começaram então a vigiar o grupo
e Mowgli traduzia o que eles falavam. Ele contou que Buldeo ficou muito
assustado ao ver as pegadas dos lobos rodeando as do menino. Também contou que
pelas conversas tinham prendido Messua e pretendiam entrega-la e sua família a
flor vermelha , mais que isso só aconteceria quando ele e os outros voltassem.
- Homens prendem homens? Indagou
Bagheera.
- Assim conta Buldeo. Disse Mowgli.
Não compreendo muito bem a conversa. Parecem loucos, todos eles. Que fizeram
Messua e seu marido para que mereçam prisão? E que historia e essa de serem devorados
pela flor vermelha? Tenho de evitar isso. Mas os que pretendem fazer a Messua
só farão quando Buldeo voltar. Irmãos lobos atrasem a volta desses homens para
a aldeia e Baguera me ajude nessa missão. Vou até alcateia dos homens ver o que
esta acontecendo. Resolveu Mowgli por fim.
Mowgli ouviu o uivo dos lobos se erguer, ecoar
e morrer transformado num canto. Percebeu que os carvoeiros e Buldeo, erguiam e
baixavam os mosquetes muito amedrontados. Nesse instante lobo Gris deu seu
grito de caça, Os demais lobos espalhados pelo jângal responderam em coro, e
Mowgli percebeu que toda a alcateia uivava o canto da madrugada. Isto assustou
tanto os homens que eles subiram em árvores e ficaram por lá um bom tempo.
Enquanto isso, Mowgli caminhava a
passos largos. Notou ao chegar a aldeia que todos os habitantes haviam regressado
dos campos mais cedo e que, em vez de estarem nas suas ocupações normais, estavam
reunidos sob a figueira, muito excitados, numa conversa sem fim.
Mowgli conhecia muito bem os
costumes e hábitos daquela gente. Sabia que, enquanto pudessem comer, conversar
e fumar não fariam outra coisa, mas logo depois de terem comido, conversado e
fumado, tornavam se perigosos.
Buldeo mais cedo ou mais tarde
chegaria e teria uma nova história para contar. Assim refletindo, entrou MowgIi
pela janela e, achegando se aos prisioneiros, cortou-lhes as cordas, soltou-os.
Messua estava apavorada com a dor
que sentia, pois havia sido apedrejada de manhã e estava muito machucada,
MowgIi pos-lhe a mão na boca para não gritar. Seu marido parecia desvairado.
- Eu sabia... Eu sabia que ele voltava,
abraçando o menino.
Mowgli fixou os olhos nas feridas
da mulher e rangeu os dentes quando viu sangue. Depois de um tempo falou que
vinha liberta-los que eles deviam fugir para longe. Mais que esperassem um pouco
porque ele tinha plano e que os caminhos do jângal seriam seguros para eles.
Deixou o casal se preparando para
fuga e foi ver o que se passava na aldeia. Mowgli saltou pela janela,
esgueirando-se ao longo do muro da aldeia, até frontear a figueira das reuniões,
onde o vozerio era intenso.
Dali ouviria tudo. Buldeo acabara
de chegar e estava sentado, tossindo e resmungando. Seus cabelos caiam sobre os
ombros; suas mãos e pernas estavam arranhadas de espinhos. Sentia dificuldade
em falar. De tempo em tempo murmurava alguma coisa sobre os diabos para criar
na multidão uma expectativa do que pretendia narrar. Depois pediu água.
- Bah! Pensou o menino. Conversa fiada, palavrório.
Os homens são irmãos de sangue dos bandar-log. Agora ele quer Iavar a boca com água,
depois fumar, e depois de tudo isto ainda há a sua historia a contar! Deixarão
Messua sem guarda, enquanto durarem as Iorotas de Buldeo.
Mowgli sacudiu-se e voltou rápido
a casinha de Messua.. Enquanto retonava encontrou mãe loba que vinha ajudar a
família que tinha recebido e acolhido seu filho mais amado e disse:
- Eu os acompanharei na fuga.
Estou velha, mas ainda tenho dentes.
Mowgli entrou novamente na casa e
encontrou o marido de Messua desenterrando um dinheiro que tinha escondido e já
prontos para a fuga. Pretendiam ir para aldeia dos ingleses, porém temiam ser
alcançados por que estavam muito machucados Mowgli então disse:
- Fujam sem medo. Nenhum homem sairá
da aldeia esta noite.
Pularam a janela. O frescor da noite logo os animou,
embora o jângal, ao longe lhes parecesse terrível seguiram o mais rápido que puderam.Antes
de partir Mowgli disse que não se assustassem e Messua o abraçou e beijou. Mowgli
sorriu. Saíram rumo ao jângal e Mae Loba surgiu do seu esconderijo.
- Siga-os. Disse Mowgli. Cuida
que todo o jângal saiba que eles têm passe livre. Vai espalhando a notícia. Vou
agora chamar Bagheera e meus irmãos lobos.
O grito de apelo soou. Logo
Baguera surgiu e se deitou na cama da cabana a espera dos aldeões a fim de assustá-los.
Ao chegarem à casa de Messua
viram no quarto, espichada na cama, negra como piche, terrível como o demônio,
Bagheera. Houve meio minuto de apavorante silencio, enquanto a pantera
arregalava seus dentes dando um rosnado profundo e fazendo com que todos
fugissem com medo para suas casas.
A rua ficou deserta. Bagheera, que tinha
saltado pela janela permanecia ao lado de Mowgli, viu ao longe um bando de
criaturas tomadas de pânico, atropelando-se precipitadamente para suas casas.
Mowgli dormiu tendo seu sono
velado pela pantera. Quando acordou soube que Messua tinha chego em segurança a
aldeia dos ingleses e que os outros homens não haviam saído de suas casas.
Pediu então que Baguera fossem chamar Hathi e seus filhos:
- Diz que venha ter comigo, Hathi
e os filhos.
- Irmãozinho, não se vai assim
falar com Hathi. Tu te esqueces de que e ele é senhor do jângal
- Tenho. Uma palavra de senha
para Hathi. Diga a ele que venha ter com Mowgli, a Rã, e se ele não te escutar,
fala do saque dos campos de Bhurtpore.
- O saque dos campos de
Bhurtpore, repetiu Bagheera e saiu,
Algum tempo depois.
- Era de fato uma palavra de
senha, sussurrou Bagheera ao regressar. Os quatro estavam pastando perto do rio
e obedeceram como se fossem bois. Estão chegando
Hathi e seus três filhos
chegaram, como de costume sem barulho, ainda com a lama do rio nos flancos.
Hathi mascava pensativamente os brotos macios arrancados com a tromba.
Mowgli apenas ergueu a cabeça
quando Hathi o saudou e disse:
- Vou contar uma história que ouvi
de um caçador, começou Mowgli. Contava que um elefante caiu numa armadilha e
foi ferido por uma estaca pontuda deixando nele uma larga cicatriz branca. Os
homens vieram para tira-lo da armadilha, mas as cordas com que o amarraram se
partiram e o elefante escapou, fugindo para longe e longe ficando até que o
ferimento cicatrizasse. Ele voltou, cheio de cólera, as terras desses caçadores,
durante a noite junto com seus três filhos, e isso aconteceu há muitas chuvas atrás,
em Bhurtpore. Mowgli se virou pra Hathi
e perguntou:
-Que aconteceu aos campos desses caçadores,
e as colheitas, Hathi?
- As colheitas foram recolhidas
por mim e pelos meus filhos.
- E o preparo da terra para novas
plantações depois da colheita? Perguntou Mowgli.
- Nunca mais se arou aquele chão.
Respondeu Hathi.
- E que aconteceu aos homens que
viviam nesse lugar? E as cabanas em que esses homens moravam?
- Nós destruímos tudo. Os campos
foram invadidos pelo jângal, de norte a suI, de leste a oeste. Foram engolidas
pelo jângal cinco aldeias, e nessas aldeias, e em seus campos e pastos, não
existem hoje um homem só que tire alimento da terra. Agora quero saber como
essa historia chegou ao filhote de homem?
Mowgli então respondeu:
- Um homem me contou, e agora
vejo que até Buldeo pode falar a verdade. Foi um bom trabalho, Hathi, mas da
segunda vez vai ser mais bem feito. Conheces a alcateia de homens que me
expulsaram? Gente preguiçosa, insensata e cruel, gente que mata os mais fracos não
para comer, mais sim por esporte.
Mowgli precisava da ajuda de
Hathi pra seu plano só o senhor do jângal conseguiria fazer a aldeia
desaparecer da terra. E disse então:
- Façamo-los fugir como fugiram
os homens dos campos de Bhurtpore, que tudo volte a ser somente floresta e que
eu não mais sinta o cheiro do sangue de Messua.
- Não haverá matança? Perguntou
Hathi. Minhas presas ficaram rubras no saque dos campos de Bhurtpore e eu não
quero nunca mais sentir o cheiro do sangue.
- Nem eu. Nem quero que os ossos
dessa gente fiquem sobre a terra. Quero este lugar limpo de sua presença Que se
mudem para longe Hathi!
O senhor do jângal entendeu os
motivos do menino saiu em marcha para preparar todo o jângal para tomar a
aldeia.
Ao cabo de dois dias todos os
habitantes do jângal estavam reunidos e
cercavam a aldeia, ao amanhecer os homens perceberam que suas roças tinham sido
destruídas pelos comedores de ervas , os búfalos fugiram famintos e alguns
outras animais tinham sido abatidos pelos comedores de carne .
Ao anoitecer não tiveram coragem
de acender as fogueiras e os elefantes entraram nas terras trazendo mais
devastação, destruindo os celeiros e as reservas de comida e as cabanas.
A devastação era tal que os
aldeões não sabiam o que fazer, não tinham forças e animo pra reconstruir. Foram
consultar os sacerdotes que concluíram que eles deviam ter de alguma maneira
ofendido o jângal e que agora ele avançava sobre eles e que nada poderia ser
feito para aplacar aquele castigo.
Mais sabe como é o homem apegado
a sua terra e os saques e investidas continuaram sobre a cidade até que não
mais restou uma única família naquelas terras.
- Tudo há seu tempo! Disse Hathi.
Minhas presas estão brancas, não ficaram rubras como em Bhurtpore! As muralhas
externas, meus filhos! Todos juntos! Vamos!
Os quatro elefantes trabalharam
lado a lado, e os muros foram caindo. Com a estação das chuvas as plantas
cresciam em tufos levando embora para sempre o cheiro de sangue e trazendo o jângal
para a aldeia. Mowgli pode enfim descansar.
Livro da Selva - Rudyard Kipling